sábado, 18 de junho de 2016

Memorando de Vincent Willow - Parte 5


Dia 71

Lewis não pode me ver, que acaba fazendo barulho demais. Mas não tem problema, consegui trazê-lo para o interior do condomínio. O cercado de telas veio bem a calhar. É do tamanho perfeito, além disso, tenho espaço suficiente para dar prosseguimento aos estudos. Acostumei-me a olhar nos olhos destas coisas. São tão vazios e opacos. Lewis já não me assusta mais, pelo contrário ele até coopera com a Ciência.

Boa parte dos utensílios que uso consegui por aqui e até mesmo no supermercado. A uma quadra e meia daqui tem uma loja de departamentos. Parece estar intacta ainda, mas não tive coragem nem ânimo pra tentar entrar lá. É muito arriscado, tem muitos deles aí na rua. Está ficando cada vez mais complicado sair lá fora.

Esperei um bom tempo para criar coragem e explorar o lugar. Já conheço as duas alas principais: a leste em que está meu apartamento, e a sul logo ao lado. Não são muito grandes, apenas uns vinte e poucos apartamentos distribuídos em cinco andares. Os corredores são apertados e algumas portas estão bloqueadas. De vez em quando penso nos infelizes que moravam nesse lugar.

O dia em que resolvi subir as escadas e explorar as instalações foi um dia bastante tenso. Não sabia o que esperar. A cada porta fechada ou entreaberta que eu empurrava vagarosamente, dava uma pausa na minha respiração. Momentos em que quanto mais silencio, menor a chance de ser pego de surpresa.

Quase todos os apartamentos em que consegui entrar estavam vazios, com exceção de dois. O número quatorze no quarto andar e o vinte e um no quinto andar. No primeiro encontrei um cara no sofá da sala. Pelo que pude ver, deve ter tido um infarto fulminante. Digo isso pela expressão no rosto dele e pela mancha enorme de urina no chão e o forte cheiro. A dor de um infarto é tão intensa, que algumas pessoas urinam sem controle durante o ataque. No apartamento do quinto andar encontrei uma mulher jovem que aparentava seus vinte e poucos anos. Estava no banheiro, caída entre o box e o vaso sanitário. Do lado dela um vasilhame de remédios e um monte de comprimidos espalhados pelo chão. Aparentemente antidepressivos e calmantes. Talvez o suicídio fosse seu objetivo... ou sua única escolha.

Peguei o que pude nos apartamentos como roupas, alguns calçados e também muitas cortinas. Os apartamentos trancados nem tentei abrir. Melhor não querer conferir o que tem lá dentro.

Devido à falta de eletricidade fiquei sem comer algo quente nos primeiros dois dias. O fornecimento de gás depende da energia também. Mas isso eu consegui resolver. No pátio do condomínio fica o reservatório de gás. Estava aberto. Os cilindros e botijões ficam alojados nos suportes presos à parede. Fechei a válvula de um dos cilindros menores e retirei-o do suporte. É um pouco pesado, mas consegui trazê-lo até o apartamento. Não é aconselhável, mas é única opção, e pelo menos tenho comida quente sempre que precisar.

Estou relativamente bem instalado aqui, mas receio que por pouco tempo. Tenho a impressão de que o reservatório de água do prédio esteja nas últimas. Quando cheguei há uns dois meses com certeza estava bem cheio. Não existe mais fornecimento de água na maioria dos lugares onde estive, e mesmo que tivesse, eu nem pensaria em usar. A contaminação da água foi a maior aliada para que o contágio atingisse as atuais proporções. É um dos motivos de eu buscar água engarrafada no supermercado e temer pelo reservatório intacto do prédio.




Dia 87


Eles são bastante lentos, mas conservam certa força física. Uma pessoa normal deve evitar ser cercada por um grupo de infectados. Qualquer contato direto deve ser evitado ao máximo.

Como eu havia observado já há algum tempo, eles parecem não enxergarem uns aos outros, fato esse que ajuda a explicar porque não se atacam. Não identificam presas pelo cheiro, mas pela sensação de calor identificada pelo cérebro através da visão. Não que eles enxerguem bem, mas pelo fato de se guiarem e identificarem algo vivo pelo calor que emite (além do barulho que faz, é claro... mesmo com a audição bem deficiente, ela ainda funciona). O globo ocular de um infectado já não distingue mais as coisas como o de uma pessoa normal, ou seja, como estão “mortos”, não enxergam os detalhes e movimentos ao redor como um humano vivo. Presas vivas emitem calor, e esse calor é identificado de maneira bem deformada e deficiente, mas é o que parece guiá-los apenas para atender o instinto de atacar e devorar. Lewis está me ajudando e muito a entender o funcionamento do organismo dessas criaturas.

Lewis... foi o nome que achei mais parecido com ele. De início pensei em acabar com ele depois que quase me mordeu. Por pouco, e unicamente por um descuido meu. Naquele dia fui fazer o reabastecimento semanal, e peguei o que deveria pegar no supermercado. Acabei trazendo algumas coisas além da conta, o que me deu menos mobilidade para fazer a travessia. Na volta ao condomínio, como a rua estava relativamente tranquila, não percebi a presença fria de um moribundo entre as sombras do beco de entrada. Ele estava vagando por ali e não sei se já estava por perto quando saí do prédio, mas o fato é que o susto foi enorme. A criatura veio sedenta ao meu encontro. Joguei tudo o que eu tinha trazido no chão e forcei a fechadura do portão lateral. Por sorte eu nunca trancava quando saía. Mas o tempo não foi suficiente para que eu o deixasse para trás. Não pude fechar o portão, pois ele já estava me segurando pela mochila... maldito filho da puta!

Quando me soltei ele já havia entrado e vinha na minha direção. Tomei distância e por alguns segundos consegui raciocinar. Era o que eu precisava. Esse infeliz poderia servir de alguma coisa, e aquela era a oportunidade. Atraí-o para o cercado perto do reservatório de gás no pátio do condomínio. A criatura entrou e com um difícil drible consegui sair e em seguida trancar o gradeado.

Chamo-o de Lewis, pois me lembra muito um dos colegas professores da Universidade de Pittsburgh, Ronald Lewis. É a cara dele. Ronald era professor de Química Orgânica em Pittsburgh já há uns treze anos. Era o mais insano de nós. Não levava quase nada a sério, inclusive suas aulas. Lembro-me de suas comparações das ligações iônicas com as fases de excitação da mulher. Ele era bom nisso, poderia se tornar comediante caso um dia estivesse de saco cheio da carreira acadêmica. Mas agora deve ser apenas mais um desses seres ambulantes que temos aí fora.




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