Dia 71
Lewis não pode me ver, que acaba
fazendo barulho demais. Mas não tem problema, consegui trazê-lo para o interior
do condomínio. O cercado de telas veio bem a calhar. É do tamanho perfeito,
além disso, tenho espaço suficiente para dar prosseguimento aos estudos.
Acostumei-me a olhar nos olhos destas coisas. São tão vazios e opacos. Lewis já
não me assusta mais, pelo contrário ele até coopera com a Ciência.
Boa parte dos utensílios que uso
consegui por aqui e até mesmo no supermercado. A uma quadra e meia daqui tem
uma loja de departamentos. Parece estar intacta ainda, mas não tive coragem nem
ânimo pra tentar entrar lá. É muito arriscado, tem muitos deles aí na rua. Está
ficando cada vez mais complicado sair lá fora.
Esperei um bom tempo para criar
coragem e explorar o lugar. Já conheço as duas alas principais: a leste em que
está meu apartamento, e a sul logo ao lado. Não são muito grandes, apenas uns vinte
e poucos apartamentos distribuídos em cinco andares. Os corredores são
apertados e algumas portas estão bloqueadas. De vez em quando penso nos
infelizes que moravam nesse lugar.
O dia em que resolvi subir as
escadas e explorar as instalações foi um dia bastante tenso. Não sabia o que
esperar. A cada porta fechada ou entreaberta que eu empurrava vagarosamente,
dava uma pausa na minha respiração. Momentos em que quanto mais silencio, menor
a chance de ser pego de surpresa.
Quase todos os apartamentos em que
consegui entrar estavam vazios, com exceção de dois. O número quatorze no
quarto andar e o vinte e um no quinto andar. No primeiro encontrei um cara no
sofá da sala. Pelo que pude ver, deve ter tido um infarto fulminante. Digo isso
pela expressão no rosto dele e pela mancha enorme de urina no chão e o forte
cheiro. A dor de um infarto é tão intensa, que algumas pessoas urinam sem
controle durante o ataque. No apartamento do quinto andar encontrei uma mulher
jovem que aparentava seus vinte e poucos anos. Estava no banheiro, caída entre
o box e o vaso sanitário. Do lado dela um vasilhame de remédios e um monte de
comprimidos espalhados pelo chão. Aparentemente antidepressivos e calmantes.
Talvez o suicídio fosse seu objetivo... ou sua única escolha.
Peguei o que pude nos apartamentos
como roupas, alguns calçados e também muitas cortinas. Os apartamentos
trancados nem tentei abrir. Melhor não querer conferir o que tem lá dentro.
Devido à falta de eletricidade
fiquei sem comer algo quente nos primeiros dois dias. O fornecimento de gás
depende da energia também. Mas isso eu consegui resolver. No pátio do
condomínio fica o reservatório de gás. Estava aberto. Os cilindros e botijões
ficam alojados nos suportes presos à parede. Fechei a válvula de um dos cilindros
menores e retirei-o do suporte. É um pouco pesado, mas consegui trazê-lo até o
apartamento. Não é aconselhável, mas é única opção, e pelo menos tenho comida
quente sempre que precisar.
Estou relativamente bem instalado
aqui, mas receio que por pouco tempo. Tenho a impressão de que o reservatório
de água do prédio esteja nas últimas. Quando cheguei há uns dois meses com
certeza estava bem cheio. Não existe mais fornecimento de água na maioria dos
lugares onde estive, e mesmo que tivesse, eu nem pensaria em usar. A
contaminação da água foi a maior aliada para que o contágio atingisse as atuais
proporções. É um dos motivos de eu buscar água engarrafada no supermercado e
temer pelo reservatório intacto do prédio.
Dia 87
Eles são bastante lentos, mas
conservam certa força física. Uma pessoa normal deve evitar ser cercada por um
grupo de infectados. Qualquer contato direto deve ser evitado ao máximo.
Como eu havia observado já há algum
tempo, eles parecem não enxergarem uns aos outros, fato esse que ajuda a explicar
porque não se atacam. Não identificam presas pelo cheiro, mas pela sensação de
calor identificada pelo cérebro através da visão. Não que eles enxerguem bem,
mas pelo fato de se guiarem e identificarem algo vivo pelo calor que emite
(além do barulho que faz, é claro... mesmo com a audição bem deficiente, ela
ainda funciona). O globo ocular de um infectado já não distingue mais as coisas
como o de uma pessoa normal, ou seja, como estão “mortos”, não enxergam os
detalhes e movimentos ao redor como um humano vivo. Presas vivas emitem calor,
e esse calor é identificado de maneira bem deformada e deficiente, mas é o que
parece guiá-los apenas para atender o instinto de atacar e devorar. Lewis está
me ajudando e muito a entender o funcionamento do organismo dessas criaturas.
Lewis... foi o nome que achei mais
parecido com ele. De início pensei em acabar com ele depois que quase me
mordeu. Por pouco, e unicamente por um descuido meu. Naquele dia fui fazer o
reabastecimento semanal, e peguei o que deveria pegar no supermercado. Acabei
trazendo algumas coisas além da conta, o que me deu menos mobilidade para fazer
a travessia. Na volta ao condomínio, como a rua estava relativamente tranquila,
não percebi a presença fria de um moribundo entre as sombras do beco de entrada.
Ele estava vagando por ali e não sei se já estava por perto quando saí do
prédio, mas o fato é que o susto foi enorme. A criatura veio sedenta ao meu
encontro. Joguei tudo o que eu tinha trazido no chão e forcei a fechadura do
portão lateral. Por sorte eu nunca trancava quando saía. Mas o tempo não foi
suficiente para que eu o deixasse para trás. Não pude fechar o portão, pois ele
já estava me segurando pela mochila... maldito filho da puta!
Quando me soltei ele já havia
entrado e vinha na minha direção. Tomei distância e por alguns segundos
consegui raciocinar. Era o que eu precisava. Esse infeliz poderia servir de
alguma coisa, e aquela era a oportunidade. Atraí-o para o cercado perto do
reservatório de gás no pátio do condomínio. A criatura entrou e com um difícil
drible consegui sair e em seguida trancar o gradeado.
Chamo-o de Lewis, pois me lembra
muito um dos colegas professores da Universidade de Pittsburgh, Ronald Lewis. É
a cara dele. Ronald era professor de Química Orgânica em Pittsburgh já há uns
treze anos. Era o mais insano de nós. Não levava quase nada a sério, inclusive
suas aulas. Lembro-me de suas comparações das ligações iônicas com as fases de
excitação da mulher. Ele era bom nisso, poderia se tornar comediante caso um
dia estivesse de saco cheio da carreira acadêmica. Mas agora deve ser apenas
mais um desses seres ambulantes que temos aí fora.
.......